14 janeiro 2009

Alargarmento da rede de cuidados continuados

"O primeiro-ministro anunciou a antecipação em um ano, para 2009, da meta de ter 8200 camas na rede de cuidados continuados e o reforço de 250 novos médicos especialistas em medicina geral e familiar." [in JN]

Trata-se de uma boa notícia, em especial para os idosos, que têm de conviver com a infelicidade das suas doenças crónicas, num país em que uma elevadíssima percentagem dos mesmos aufere de reformas que se situam no limiar da pobreza, cujo rendimento mensal, por vezes não chega para comer, porque a sua saúde depende de uma panóplia de medicamentos cujo preço (pouco comparticipado pelo governo central) se encontra inflacionado pelo lobby da indústria farmacêutica. Por que estamos a falar de uma faixa etária esquecida (muitas vezes pelos própios familiares), abandonada, desrespeitada e acima de tudo desperdiçada (os velhos podem ensinar-nos tantas coisas).

Por que as doenças crónicas agudizam e levam milhares todos os dias às urgências e aos internamentos hospitalares, e depois de uns dias ou semanas de tratamento, a levar com o mau feitio dos médicos, dos enfermeiros, etc; a situação finalmente estabiliza e dá-se a alta clínica, mas, muitas vezes ficam sequelas ou limitações que os incapacitam para tarefas tão básicas como cuidar da sua higiene, mobilizar-se, comer, seguir correctamente o plano terapêutico, etc. Actividades essas, que realizavam sem dificuldade, até ao dia em que foram parar às urgências.

Por que estas almas foram relegadas à solidão (os filhos e os netos ou emigraram ou estão na cidade, ou simplesmente não querem saber deles), e não têm ninguém que os ajude ou que tome conta deles no domicílio. Por vezes a família que devia procurar apoio e apoiar, só complica. É muito frequente atribuirem a culpa da situação aos próprios profissionais de saúde em frases do tipo: "eu quando trouxe a minha mãe prá urgência ela falava, andava e fazia tudo em casa. Ela agora não anda, não fala, caga-se e mija-se toda, não se mexe, parece um vegetal. Mas afinal ela veio para o hospital e ainda sai daqui pior!? A culpa é vossa! (profissionais de saúde). A minha mãe só sai daqui quando voltar a andar, a falar..."

E é isto, a pobre coitada sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) e a família diz que a culpa é do hospital, porque muito boa gente não consegue aceitar o envelhecimento, a doença e a morte, nem em si prórpios nem nos seus familiares.

O que normalmente acontece é o encaminhamento do processo para a assistente social e o consequente prolongamento do internamento hospitalar, até que se resolva a situação social. Digo-vos que pode levar meses, e durante este período ocupam uma cama hospitalar que poderia estar vaga para quem realmente precisa no momento.

Uma boa rede de cuidados continuados irá certamente ajudar na resolução deste problema. Por um lado irá ajudar na convalescença e na reabilitação das limitações provocadas pelas doenças súbitas, crónicas, ou agudização das mesmas. Por outro lado, constroi uma ponte de ligação entre o hospital e o domicílio, eliminando os internamentos desnecessariamente prolongados, dando tempo às famílias para procurarem soluções e se prepararem do ponto de vista socio-económico, a fim de receber os seus velhos em casa. Ou para conseguirem vaga para os mesmos em lares e casas de repouso (também escassas neste país), nas quais terão assistência 24h por dia, uma cama, roupa lavada, comida saudável..., e acima de tudo, companhia. Para que no mínimo, possam ter uma velhice, um final de vida e uma morte dignas de um ser humano.

Até porque, é bom lembrar que as últimas previsões estatísticas apontam para um envelhecimento progressivo da população em toda a Europa (Portugal não escapa), quer pelo aumento da esperança média de vida, quer pela reduzida taxa de natalidade.

Parece que desta vez o Governo estabeleceu uma meta acertada e necessária para o país. Resta saber se o seu desenrolar vai ser leal aos interesses do país, ou leal aos interesses político-partidários. Por que convém não esquecer que vão ser investidos cerca de 65 + 35 milhões de euros em projectos, pareceres, obras de construção civil, novos postos de trabalho, etc; susceptíveis de manobras de interesse político.

4 comentários:

  1. Geralmente não tenho muito tempo para comentar, já que mesmo os posts são lidos de fugida. Contudo, sendo eu enfermeiro e um interessado nas matérias da saúde em Portugal não poderia deixar de dizer algumas palavras acerca da RCCI.

    Em primeiro lugar esta rede não é do Serviço Nacional de Saúde. É uma rede partilhada entre público (SNS) e privado. Com financiamento autónomo do SNS e proveniente do Ministério da Saúde e do Trabalho e Solidariedade Social. Isto poderia até ser irrelevante, todavia vai ser importante para algumas das coisas que vou falar a seguir.

    A rede surgiu como uma criação do Ministro Correia de Campos, após algumas reflexões sobre a saúde do tempo do Presidente Jorge Sampaio e que apontavam para a falta de reabilitação e de cuidados de saúde básicos, tal como, o Abel refere e muito bem, serem uma das grandes lacunas das instituições de saúde. Foi uma cópia também dum modelo utilizado na Catalunha. A questão é que se criou um terceiro modelo e sistema de financiamento: há para a saúde o SNS, para os lares e rede de apoio social a segurança social e uma terceira rede, autónoma, que poderemos chamar RCCI. Segundo um estudioso da matéria do envelhecimento e do apoio social, Inácio Martin (Doutor da Universidade de Aveiro) este sistema e a forma como foi feito, com o aumento sucessivo da procura, fruto do tal envelhecimento que o Abel fala, vai conduzir a falência da rede de apoio. Ou seja, apenas falando em política, vemos que esta aposta do governo não é assim tão boa como parece, pois a longo prazo será insustentável.

    Mas, como profissional de saúde não me posso dar ao luxo de apenas destruir uma alternativa criada e que penso ser necessária. Contudo, esta não é A alternativa.

    Vai ser necessário, neste país mudar o paradigma de saúde se não queremos destruir o SNS, teremos de construir uma rede social de apoio diferente da actual. Os lares neste momento são hospitais de retaguarda e não rede social de apoio. Como tal, será necessária uma profunda reflexão da saúde. Como? Mudando o paradigma dos resultados! Neste momento queremos resultados em número de cirurgias, primeiras consultas, consultas de especialidade, porém esta diferenciação da saúde está a esquecer a saúde básica às populações. Além disso, os lares não podem ser unidades de retaguarda para aqueles que são rejeitados socialmente, visto que não estão fisicamente preparados para tal, quer em recursos humanos, quer em recursos materiais.

    Só quando se pensar em retirar os profissionais de saúde dos contextos de internamento de agudos, e se deixar de querer curar a doença é que se conseguirá obter resultados de qualidade de vida das pessoas. Através, de cuidados domiciliários de qualidade, promoção da saúde e prevenção da doença. Assim, aquela que deveria ser a grande aposta do governo está encerrada, a reforma dos Agrupamentos de Centros de Saúde e a Criação das Unidades de Saúde na Comunidade.

    Não poderia deixar de dar uma palavra em defesa duma acusação grave que o Abel faz aos profissionais de saúde. Estes por vezes laboram nos limites das suas condições e capacidades e como tal, isso potencia o erro. Trabalhar com 22 doentes numa tarde com 2 enfermeiros que a alguns doentes mal têm tempo de lhe ver a cara é desgastante não só fisicamente como psicologicamente e como tal, os profissionais por mais treinados que estejam falham.

    Por último dizer que a base da RCCI é o trabalho dos enfermeiros que ajudam, tal como o Abel diz ser necessário, a reabilitar e a adaptar a pessoa à sua nova condição de saúde, será que se estes são assim tão providos de mau feitio. Não conheço aliás, nenhum profissional de saúde a excepção do enfermeiro que ensine um doente a transferir-se da cama para a cadeira após um AVC, a tomar banho após um AVC, a perceber o porquê de tomar um medicamento a determinada hora e que consequências pode ter da toma e da não toma desse medicamento. Muitas vezes não o fazem, porque os próprios resultados da saúde esperam outras coisas mais visíveis dos enfermeiros, e que tragam resultados imediatos e não ao longo prazo.

    A RCCI é uma boa inovação e que dá alguma ajuda ao sistema, contudo tem de funcionar correctamente para que efectivamente seja feita reabilitação e para que estas não se tornem apenas um hospital de retaguarda, em que nada se faz de diferente dum hospital, por falta de recursos humanos. O paliativo não pode ser apenas um local diferente do que se quer remendar.

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  2. Caro Luís, muito obrigado pelo teu pertinente comentário.

    Quanto à sustentabilidade da RCCI eu não tenho dados para dizer se é ou não viável, até porque não sou economista nem futurista. Aquilo que eu acho, e tendo em conta a conjuntura actual, é que o alargamento da rede é premente e necessário. Por um lado vai criar postos de trabalho que ajuda no combate ao desemprego, vai criar investimento público que segundo os analistas económicos é imprescindível para combater esta crise financeira (sendo este investimento aplicado a um bem essencial - a saúde). Por outro lado vai certamente ajudar à eliminação desta lacuna do sistema de saúde português, que como tu dizes, privilegia o tratamento da doença esquecendo-se da prevenção e da reabilitação da mesma.

    Quando elaborei este post procurei essencialmente chamar a atenção para as condições terceiro-mundistas em que muitos dos idosos vivem neste país e, a falta de assistência que estes têm à medida que vão envelhecendo vendo a sua condição de doença roubar-lhes a independência, a liberdade e o gosto de viver.

    Concordo plenamente contigo quando referes que é necessário mudar o paradigma da saúde em Portugal. A política de saúde deveria centrar-se na promoção de saúde e prevenção da doença quer pelas políticas de educção para a saúde e adopção de estilos de vida saudáveis, quer pelo melhoramento da acessibilidade às especialidades médicas/cirúrgicas, bem como o diagnóstico precoce. Contudo, penso que esse paradigma poderá levar anos ou mesmo décadas para se alterar. A nossa sociedade continua a priviligiar o recurso aos serviços de urgência em vez de procurar um acompanhamento médico gradual ao longo do seu ciclo de vida. É uma questão cultural que não se muda numa nem em duas gerações. E até lá, os idosos e as pessoas dependentes não podem continuar sem assitência digna da sua condição de seres-humanos. Daí eu ser a favor desta medida.

    Talvez tenhas razão quanto à insustentabilidade desta rede, até porqu sei muito bem o quanto Portugal é despesista em termos de cuidados de saúde. O problema aqui é estarmos a falar de um bem social imprescindível - que é a saúde, e que sem dúvida é mais importante que o dinheiro. Aquilo que eu penso é que de momento não há grandes alternativas viáveis. Muito provavelmente o que irá acontecer no futuro (se a insustentabilidade da rede se vier a confirmar), será a privatização de algumas instituições e unidades, a fim de equilibrar a despesa. Mas isto são apenas projecções e desvaneios do meu pensamento.

    Discordo contigo quando defendes a retirada de profissionais de saúde dos internamentos de agudos. Tu próprio referes, no parágrafo seguinte, a dificuldade e o desgastes que é trabalhar com escassos recursos humanos. Os hospitais não têm enfermeiros a mais, o país é que é que têm muitos enfermeiros e não os rentabiliza. Quero com isto dizer que faltam enfermeiros (15000 ou 20000, segundo os sindicatos) tanto nos hospitais como em centros de sáude e unidades de convalescença e outros. O nosso rácio enfermeiro/nº de habitantes é muito inferior ao dos restantes países da OCDE.
    A questão é haver milhares de enfermeiros e outros profissionais de saúde no desemprego e sabermos que a sociedade precisa deles para melhorar o sistema de saúde que nos serve (paradoxal não é?).

    Quanto à acusãção grave que referes que eu afirmei, devo dizer-te e talvez para teu enorme espanto, que eu também sou enfermeiro. Quando falei em mau feitio foi em tom de brincadeira. Eu sei muito bem o quão dificil é trabalhar com idosos, até porque exerço a minha actividade em medicina interna. O que quis dizer é que muitas vezes a nossa paciência com os velhos é pouca, muito por culpa do que referiste como sendo trabalhar nos limites de desgaste físico e psicológico (compreendo-te mais do que imaginas). Para não falar da escassez de recurssos materiais e infraestructuras completamente desajustadas à prestação de cuidados de saúde.

    Quanto ao bom funcionamento desta rede, penso que deixei bem claro a minha preocupação no último parágrafo do post. Para que funcione bem, é fundamental que ela seja leal aos interesses da sociedade portuguesa na sua totalidade.

    É sempre bom debater este tema com um colega de profissão. Serás sempre bem-vindo. Mais uma vez obrigado pelo comentário.

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  3. O envelhecimento da população é realmente uma problemática para a qual os países se devem preparar e só com iniciativas deste género, e muitas outras, é que poderemos defender uma classe já de si muito carenciada, a vários níveis.

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  4. Charlene, subscrevo na totalidade. Não podemos apenas ter em conta os critérios economicistas e esquecer aqueles que no seu dia-à-dia, são economicamente e socialmente desfavorecidos.

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