29 janeiro 2010

Uma mentalidade social também desmotivante

A sociedade que temos hoje, parece viver mergulhada numa espécie de procura permanente da relação - causa-efeito. Enquanto saudáveis tudo corre bem, quando surge um problema de saúde, tudo parece resolver-se com uns comprimidinhos, com umas análises e uma dietinha, ou com uma bateria de RX´s, TAC´s, RMN, Ecografias..., e uma boa dose de frases do tipo - não se preocupe tudo vai correr bem, isto que o sr(a) tem trata-se.

Aqui surge um apontamento. Tratar é uma coisa diferente de cuidar.

E apetece-me escrever hoje, porque se vai lendo uns comentários aqui e ali, que são tão básicos e desprovidos de argumentos e, muito propavelmente desprovidos de conhecimento de causa, que qualquer enfermeiro sente tristeza, e vê a não valorização de um trabalho de muita responsabilidade e desgaste.

Há ainda quem diga que não é uma boa altura para se convocarem greves. Eu pergunto se há alguma altura ideal para se fazerem greves, ou se tem de se encomendar um estudo científico para escolher as suas datas. Talvez para algumas cabecinhas, as greves deviam guardar-se para quando tudo parece correr bem, quando o país cresce, quando as pessoas vivem felizes, quando sentem justiça e são reconhecidas pelo seu trabalho, pelo seu esforço e pela busca da melhoria dos seus conhecimentos e qualidade na contribuição para o bem-estar das pessoas.

Na sociedade, a correria é tanta que tão pouco aprecia aquilo que é fundamental para a sua sobrevivência. Vive tão friamente à procura não sabe bem do quê, que nem de si sabe cuidar. Acha que sabe tudo de tudo e, que com uma busca no google ou umas breves leituras aqui e ali, se sabe muito sobre cuidados de saúde. Tão pouco aprecia um copo de água porque não se sente desidratada. Tão pouco aprecia o ar que respira. Tão pouco aprecia o seu corpo e a sua pele limpa. Tão pouco aprecia a sua independência e a sua autonomia para andar, comer, urinar e evacuar, ou de se virar numa cama as vezes que quiser durante a noite. Tão pouco aprecia a sua capacidade de comunicar as suas necessidades através da fala. Tão pouco aprecia a ausência de dor física, e também emocional, só se lembrando dela quando doi a sério e quando não tem ninguém que ouça os seus apelos ou a compreenda, por palavras ou por linguagem não verbal. Tão pouco sabe daquilo que a faz acreditar, daquilo que é olhar para ela como um conjunto de pessoas humanas na sua essência, que têm necessidades, e que precisa de as satisfazer para se sentir bem, feliz, e sobretudo, acreditar que a vida ainda tem algum significado. Seria bom que se lembrasse que a morte não é só biológica. São as necessidades que estão presentes desde o nascimento até à morte, aquelas que mais negligencia e as que mais sentido dão ao viver.

É talvez por isso que só o perceba, quando a doença força a uma alteração dos seus hábitos, e não são todos que o percebem, infelizmente. Talvez por isso, até chegar esse momento, pouco aprecia quem cuida dos seus conhecidos e familiares doentes, quem anda para trás e para a frente, para cima e para baixo, em telefonemas atrás de telefonemas, num esforço permanente de solicitar, ou sugerir ao médico a prescrição de um analgésico, um ansiolítico ou um medicamento para dormir. Para sugerir um alteração da dieta, ou um acerto na dosagem de um medicamento, ou para alertar para a necessidade de uma observação psiquiátrica, ou ainda solicitar uma avaliação da situação social. Tão pouco valoriza quem dá uma papa à boca. Tão pouco valoriza quem dá um banho, limpa um rabo ou limpa uma boca. Tão pouco valoriza quem detecta uma candidíase, uma escabiose, ou um herpes, ou uma conjuntivite... e solicita ao médico que prescreva umas pomadinhas, ou umas gotinhas. Tão pouco valoriza quem intervém na reabilitação, na explicação da importância das terapêuticas, na informação contínua que lhe presta sobre a sua evolução clínica, sobre a importância e utilidade dos procedimentos técnicos que são executados e sobre os exames que vão ser efectuados. Tão pouco aprecia quem a ajuda a ser menos dependente, e quem lhe ensina as estratégias para se tornar mais autónoma. Tão pouco aprecia aqueles que menos absentismo laboral apresentam ao seu serviço.

Ou seja, tão pouco aprecia que haja alguém presente, que dê cavaco, que se lembre da pessoa, que a informe, que se preocupe com ela, que a compreenda, que a queira ajudar, que olhe para ela como um todo.

Mas não é só no cuidar, também há as componentes técnicas. Para além de cuidar, os enfermeiros também intervêm no tratamento. Os enfermeiros são responsáveis por inúmeros equipamentos tecnólógicos, pelo seu manuseamento e manutenção. São responsáveis pela gestão dos stock´s e dos recursos materiais existentes nos serviços. São quem administra terapêutica e monitoriza os seus efeitos. São quem sabe como a terapêutica é preparada. Conhecem também as suas interacções, os seus objectivos e as complicações que podem provocar no organismo. São quem monitoriza o doente durante as 24h. São quem no imediato assiste o doente e intervém em situações de emergência, providenciando o que é necessário até que o médico chegue e complete a estabilização. Em algumas áreas entubam até oro-traquealmente, quando necessário. São quem prepara os procedimentos técnicos médicos, são quem prepara doentes para os exames e cirúrgias, são quem efectua colheitas de sangue, de urina, fezes, expecturação, exsudados de escaras, etc, São quem algalia, quem coloca sondas-nasogástricas, quem realiza os pensos, e quem monitoriza toda a hemodinâmica durante 24h. São quem fazem do corpo e da alma de uma pessoa o seu trabalho. E ainda tratam de papelada e burocracias. Também fazem trabalho de administrativos nas horas e nos dias em que ele lá não está, porque muitos serviços de saúde não fecham durante a noite nem aos fins-de-semana e feriados. Também organizam processos, resolvem questões burocráticas e atendem telefones.

É quando o problema de sáude se agrava, quando rouba o bem-estar, a autonomia e independência na satisfação dessas necessidades, que se passa a dar mais importância às coisas que pareciam mais simples e banais da vida, mas, que são as que se revelam mais importantes. E é aqui, que a tal relação de causa-efeito deixa de fazer sentido. É aqui que entra em jogo a espiritualidade da pessoa, a sua intimidade, as suas crenças, os seus objectivos, os seus gostos e os seus hábitos, no fundo, a sua singularidade, a sua personalidade única, que impede que essa relação de causa-efeito seja um sucesso garantido. É aqui que digo, ninguém conhece melhor um doente que o enfermeiro, ninguém gere tanta informação diversificada sobre o doente como enfermeiro. É porque as pessoas são todas diferentes, que a profissão de enfermagem é tão difícil, desgastante e um desafio constante.

Podia estar aqui a noite toda a escrever e a descrever exemplos da importância desta profissão.

Há quem por ignorância ou estupidez, ache que tudo é fácil, ache que é só limpar uns cuzinhos e dar uma injecções. Para isso até um serralheiro serviria, pensam eles. Mas estão mais enganados do que julgam. Por que até para isso é preciso ter jeito. Nós não nascemos todos para o mesmo. Por isso tão pouco dão ouvidos ao que o enfermeiro lhes diz, tão pouco valorizam no que os educa e aconselha nos seus hábitos e na promoção da sua saúde, no acompanhento domiciliário, no envolvimento da família e na articulação dentro dos serviços de saúde e com serviços sociais e educacionais. Como se não fossem necessários conhecimentos científicos, técnicos, clínicos, humanos e sociais, para exercer enfermagem. Para aqueles que julgam que os enfermeiros são meros empregados dos médicos e se limitam a cumprir as suas ordens, não tendo nenhuma actividade autónoma, então pergunto, o porquê de serem tão exigentes connosco quando recorrem aos serviços de saúde? Por que chamam tanto pelos enfermeiros nas situações de aflição? Por que nos atiram com responsabilidade à cara quando no doente surgem alterações? Por que fazem tantas perguntas ao enfermeiro?

Por isso digo, que estamos cá para lembrar a sociedade que as coisas aparentemente banais da vida, são aquelas que mais sentido lhe dão. Os enfermeiros estão cá para ajudar a satisfazer essas necessidades, ou restituir a autonomia na satisfação das mesmas. Nós estamos cá para vos servir e não estamos apenas presentes nas instituições de saúde. No dia-a-dia estamos ao vosso lado, e fiquem descansados que não vos vamos cobrar 100 euros por limpar um rabo ou dar uma injecção.

Sou um enfermeiro orgulhoso do meu trabalho, perdi o nojo do cheiro a merda, depressa me habituei à arrogância de pessoas sãs e doentes, ao insulto. Deixou de me incomodar o cheiro a sangue, os salpicos de secrecçõs, a tosse e os espirros para cima da minha cara, dos meus braços e do meu cabêlo. Não corro atrás do frasco de álcool para despejá-lo em cima de mim por ter medo das bactérias e afins. tenho prazer de cuidar pessoas desorientadas que perderam a noção do mundo e de tudo aquilo que as rodeia. As mais necessitadas são aquelas a quem dou prioridade, independentemente do seu status... Sabem qual o maior gozo de ser enfermeiro? É o de crescer-se como pessoa, de dar valor ao que muitos se esqueceram de dar. Esse é o meu verdadeiro orgasmo profissional. A única coisa que me incomoda, é que não se dê valor ao trabalho e dedicação de uma profissão tão humana como é a enfermagem.

Quando ouvi a ministra Ana Jorge apelar ao bom senso dos enfermeiros, o meu sentimento imediato foi, o de que a caríssima ministra é que perdeu o bom senso.

2 comentários:

  1. Sou estudante do 3º ano de enfermagem e fico triste, como pessoa comum, aluno e futuro profissional, ao ouvir as palavras da ministra e de outros.
    A classe de enfermagem tem sido alvo de ataques desde à muito tempo. Parece-me a mim fruto de ignorância e teimosia...
    No meu entender existe, ainda, uma ideia feita ou mesmo um preconceito de que enfermagem são umas senhoras com uma "fardinha" branca, que dão umas injecções e pouco mais...Talvez tenha sido assim, mas no séc. XVII!
    Com o desenrolar dos tempos, com a alteração e evolução das características sociais e para poder corresponder às suas exigências o enfermeiro, é hoje um profissional com formação académica. É responsável pela promoção, prevenção e recuperação da saúde dos indíviduos. Traduzindo por miúdos, "São quem fazem do corpo e da alma de uma pessoa o seu trabalho".

    Parece-me a mim, portanto, um acto indigno, impróprio o não reconhecimento da importância, do trabalho e da entrega desta classe... O desgaste físico e psicológico que a profissão acarreta com o decorrer dos anos...

    "Enfermagem é a arte de cuidar."

    Parabéns pelo post Enf. Abel Alves!

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  2. Caro Fénix, agradeço o comentário e o elogio. Fico feliz por saber que haverá mais um cabeceirense que no futuro será meu colega de profissão, e que ainda por cima é apreciador de boa música.
    Dou-te um conselho, vai te habituando, porque quando entrares na "selva", vais aperceber-te que as coisas são bem piores que aquilo que a experiência enquanto aluno em estágio te proporciona. Mas não baixes os braços, luta sempre, e a luta deve primar pela procura da qualidade do teu trabalho, pelo não te deixares "atropelar" injustamente, e pelo uso da inteligência prática e emocional. Para onde quer que vás, batalha sempre pela união da equipa e pela inter-ajuda, se todos remarem no mesmo sentido é meio caminho andado. Só assim conseguirás ser respeitado nesta "selva", e só assim te sentirás realizado e orgulhoso pelo trabalho que desenvolves.

    P.S. - Continua a dar boa música à blogosfera.

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