20 julho 2009

Algumas verdades e sugestões, sobre e para o SNS

"Como é que se incentiva a eficácia de um serviço hospitalar se o seu director não tem a obrigação de «prestar contas» do trabalho que é desenvolvido?"
"Não se incentiva, a ideia é mesmo essa. Eu continuo a acreditar que a maioria dos problemas do SNS seria resolvida se os directores de serviço fossem obrigados – e têm de ser obrigados – a assumir essas responsabilidades. Com certeza que o senhor Belmiro de Azevedo – atrevo-me a citá-lo porque é uma pessoa conhecida e respeitada – tem pessoas totalmente responsáveis e completamente autónomas nas suas várias empresas. Colaboradores que respondem directamente perante ele ou diante de quem lhe sucedeu. Se trabalharem bem são compensados, se trabalharem mal mudam-nos de poiso ou mandam-nos passear para outro lado. Nos hospitais deveria ser exactamente a mesma coisa, mas para isso a legislação tem der ser modificada."
"Por causa da gestão do pessoal?"
"A dicotomia entre as duas grandes classes profissionais do SNS – os enfermeiros e os médicos –, cada uma com a sua pirâmide de comando completamente independente e diferente, é uma grande dificuldade. No meu serviço, sem que a lei tenha sido modificada, tenho duas enfermeiras-chefes com quem dialogo todos os dias e com quem nunca tive nenhum problema. É claro que faço questão de não intervir nos aspectos técnicos da profissão de enfermagem, tão-pouco nas escalas. Apenas defino a política geral do serviço, ouvindo as suas opiniões, e claro que nem sempre estamos os três de acordo. Por exemplo, durante este problema que tive com o CA conversámos muito e, embora as duas entendessem que era muito mau mudarmos as regras de funcionamento, não faço segredo que uma delas até entendia que não valia a pena ir à luta, pensava que eu ia perder a batalha. Também é nestes momentos que um serviço se faz e amadurece. É preciso que se assuma de uma vez por todas que qualquer embarcação tem de ter um comandante. Obviamente que ele não resolve todos os problemas do navio e não está ao leme, mas é sempre ele o responsável – quando as coisas correm bem e quando correm mal também."
"O acesso aos cuidados de saúde melhorou e a prestação também. Ainda assim, os portugueses continuam insatisfeitos e os profissionais de saúde igualmente. Isto não tem emenda?"
"Tem solução. Nós progredimos mas poderíamos ter avançado mais. Temos capacidade, temos conhecimento, porventura até temos mão-de-obra em excesso. Ao contrário do que outros dizem, não temos uma falta grosseira de médicos, até temos um rácio mais elevado do que a maioria dos países europeus, temos é uma distribuição inadequada por especialidades e regiões. Comete-se tantos erros e ninguém é responsável. No ano passado o Ministério da Saúde [MS] até abriu uma vaga para um interno de cirurgia cardiotorácica num hospital distrital onde a especialidade não existe. São decisões cegas, decisões políticas. Depois, ainda há necessidade de assegurar a exclusividade dos médicos que trabalham para o SNS: se quiserem dêem-lhe outro nome mas assegurem-se de que os médicos trabalham em dedicação plena. Acabem de vez com os contratos que assentam na cláusula do «pagamos pouco, mas vocês mostrem-se por aí, façam de conta, e vão ganhar a vida para outro lado»."
"Teme o fim do SNS? "
"Não, mas temos de trabalhar mais. Os doentes estão mais informados, são mais exigentes e o acesso e os cuidados de saúde melhoraram. Temos um SNS que não nos envergonha mas que poderia ser muito mais eficaz. Mas se não temos as melhores estradas, os melhores carros, as melhores habitações, a melhor educação, a melhor justiça, porque havemos de ter o melhor SNS?"
"Lembra-se da entrevista que deu à nm há dez anos? É que ainda está actual... Hoje falámos mais do mesmo."
"É isso mesmo, realmente pouco aconteceu nestes últimos dez anos. As poucas reformas, se é que assim se podem chamar, entretanto feitas, não foram ao fundo dos problemas – o mais grave reside no sistema de trabalho dos profissionais do SNS, especialmente dos médicos. Volto a insistir num sistema de dedicação plena. Curiosamente, na reforma das carreiras médicas, recentemente negociada, mais uma vez aparece a dedicação exclusiva como um objectivo a atingir. Já lá estava antes mas, aparentemente, não é para ser levado a sério!"
"E aos que o acusam de receber um «salário de luxo»?"
"(...) Em média, os médicos do nosso centro trabalham entre setenta e 75 horas por semana. É muito? É, se calhar é demasiado, mas é o que é necessário para satisfazer as necessidades dos nossos doentes. Certamente não fazemos mais horas do que a maioria dos médicos portugueses que todos os dias trabalham quatro horas no hospital e mais oito na clínica privada. Entre outras, eu e os médicos do centro temos a vantagem de não andar a correr de um hospital para o outro. Mas para sermos honestos também é preciso dizer que mesmo com horas extraordinárias recebemos muito menos do que os colegas que fazem clínica privada. Até porque o SNS nunca poderá compensar o que um médico cirurgião pode receber cá fora, no exercício livre da profissão. Sobretudo quando se tem um nome. Eu tenho um nome e orgulho-me disso. Mas também me orgulho do trabalho que desenvolvi num centro público. Orgulho-me dos doentes e dos médicos que ensinei."
"Quando um dia recordarmos o professor Manuel Antunes, acha que vamos lembrá-lo como o cirurgião cardiotorácico que chegou, viu e venceu ou como o médico que ousou trabalhar de forma diferente?"
"Talvez pelas duas razões, mas a modéstia deveria obrigar-me a preferir a última. Mas esta também não é uma originalidade minha. Nós trabalhamos em Coimbra como se trabalha geralmente lá fora. Com intensidade, persistência, rigor e disciplina, tudo qualidades a que nós, portugueses, somos muitas vezes adversos. O sucesso do modelo está numa equipe coesa e motivada, construída durante estes últimos vinte anos, que produz trabalho de qualidade reconhecido a nível nacional e não só. Eu reivindico apenas o mérito desta selecção e da liderança. Acredito que uma liderança forte e determinada, talvez até teimosa, é um requisito fundamental para o sucesso de qualquer projecto. Mas Portugal não gosta de lideranças fortes e, por isso, serei talvez recordado mais pela negativa."

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